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Fosfoetanolamina: A pílula do câncer


A substância fosfoetanolamina ficou conhecida como a pílula do câncer desde que começou a ser produzida e distribuída pelo químico Gilberto Orivaldo Chierice, então professor da Universidade de São Paulo (USP) no final da década de 1980. Em junho de 2015, a própria USP suspendeu a fabricação e distribuição da substância, já que a mesma estava sendo utilizada pelos pacientes sem registro como medicamento e assim, gerando riscos à saúde destes pacientes. Este episódio gerou uma polêmica, já que a substância representava a esperança de muitos e chegou a ser chamada de “a cura do câncer”. No entanto no Brasil, para que uma substância obtenha registro como medicamento são necessários uma série de estudos científicos, começando por ensaios em laboratórios. Nesta etapa se realiza diversos testes em animais e, somente após esta fase, se inicia os testes em humanos. Após esta bateria de testes, aliados a resultados positivos e demonstrando superioridade em relação às opções terapêuticas já existentes, a substância poderá ganhar registro como medicamento, e só então, será largamente utilizada no tratamento de doenças. O professor Chierice pulou essas etapas e em março de 2016 foi denunciado pela própria USP por curandeirismo e por expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto iminente, previstos como crimes nos artigos 284 e 132 do Código Penal.

Após esta polêmica e grande apelo popular daqueles que viam na fosfoetanolamina a esperança na cura do câncer, alguns pacientes conseguiram autorização da justiça brasileira para utilizar a substância. Neste cenário o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) destinou R$ 10 milhões para as atividades ligadas à pesquisa da fosfoetanolamina que serão desenvolvidos em um período de dois anos. Os resultados dos primeiros testes já estão sendo divulgados em um canal criado pelo MCTI para divulgação para a população dos resultados dessas pesquisas. E será que esses resultados indicam que a fosfoetanolamina representará uma nova esperança no tratamento do câncer?

A fosfoetanolamina é um derivado da etanolamina (amina e álcool primário) e o embasamento sobre a atividade antitumoral partiu dos estudos realizados pelo grupo do Prof. Chierice e colaboradores, que demonstrou que a fosfoetanolamina em altas concentrações apresentou redução da viabilidade celular (morte celular) para diferentes células tumorais humanas, incluindo células de leucemia linfoide (IC50, 6-12 mM), células de leucemia mieloide (IC50, 9 mM), células de câncer de mama (IC50, 1,82 mg/mL), células de câncer de pulmão (IC50, 1,32 mg/mL), células de melanoma humano (IC50, 1,20 mg/mL). Os estudos de Ferreira e colaboradores demonstraram atividade antiploriferativa em células de melanoma de roedores e estudos in vivo demonstraram que administrados por via intraperitonial, a fosfoetanolamina apresentou atividade antitumoral sobre leucemia em camundongos e sobre o tumor ascítico de Ehrlich (Ferreira et al., 2012), porém, é preciso entender que diversas moléculas que apresentam atividade biológica em testes em laboratório não se tornam medicamentos, por não conseguirem atingir aos padrões de eficácia e segurança necessários.

Abaixo, serão apresentados os resultados dos estudos com a fosfoetanolamina, desenvolvidos pelos grupos de trabalho organizados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e que foram divulgados até o final de 2016.

Análise dos componentes químicos das cápsulas de Fosfoetanolamina distribuídas na USP

O resultado dos primeiros testes divulgados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) afetaram a credibilidade das cápsulas de fosfoetanolamina que haviam sido distribuídos na USP pelo Prof. Chierice. Essas cápsulas traziam no rótulo a informação Fosfoetanolamina 500 mg, porém os testes revelaram que as 16 cápsulas analisadas possuíam concentrações muito abaixo de 500 mg, variando de 233 mg à 368 mg, tendo uma porcentagem média de 32,2 % de fosfoetanolamina, 34,9 % de fosfato de cálcio, magnésio, ferro, manganês, alumínio, zinco e bário, 3,6 % de pirofosfato de cálcio, 18,2% de monoetanolamina protonada, 3,9% de fosfobisetanolamina e 7,2% de água. Essa discrepância entre a informação descrita no rótulo e o conteúdo real das cápsulas gerou a necessidade de realizar testes também com a monoetanolamina e fosfobisetanolamina.

Avaliação do potencial citotóxico In vitro da Fosfoetanolamina sintética e da Fosfoetanolamina sintética nanoencapsulada

O objetivo deste estudo foi verificar o potencial antiproliferativo in vitro da fosfoetanolamina sintética (produzida pela USP) e da fosfoetanolamina sintética nanoencapsulada (obtida da industria farmaquímica) frente a três linhagens de células não tumorais, além de verificar o potencial hemolítico destes compostos. Ambos os compostos, somente apresentaram atividade citotóxica em concentrações elevadas, com valores de concentração inibitória mínima (CI50) que variam de 8,6 a 43,4 mM para fosfoetanolamina sintética e 18,1 a 75,9 mM para fosfoetanolamina sintética nanoencapsulada. Esse resultado sugere que somente em altas concentrações, a fosfoetanolamina afeta o desenvolvimento de novas células sadias e por isso, seria segura em algumas dosagens, sendo este um fator positivo no desenvolvimento de novos fármacos antitumorais.

Avaliação da atividade citotóxica e antiproliferativa da Fosfoetanolamina, Monoetanolamina e Fosfobisetanolamina em células humanas de carcinoma de pâncreas e melanoma

Este estudo também avaliou a atividade citotóxica e antiproliferativa da fosfoetanolamina, monoetanolamina e fosfobisetanolamina, só que diferentemente no estudo anterior, as análises foram realizadas em células de carcinoma de pâncreas e pulmão. Essa possível ação antitumoral foi analisada por três metodologias diferentes. Os resultados não foram promissores já que a apenas a monoetanolamina apresentou atividade antiproliferativa e citotóxica, sendo esta atividade significativamente menor aos resultados apresentados pela Cisplatina e Gencitabina, que são medicamentos com conhecidas atividade citotóxica e antiproliferativa.

Estudo de toxicidade oral de dose máxima tolerada e doses repetidas por 7 dias da Fosfoetanolamina sintética em ratos

Este estudo se propõe a identificar a dose máxima que pode ser administrada sem causar toxicidade significativa ao organismo. Como resultado, não foi observado toxicidade nos animais em relação aos diversos parâmetros avaliados em nenhuma das doses testadas e por isso não foi possível estimar a dose máxima tolerada (DMT). Este ensaio também sugere que a fosfoetanolamina poderá ser considerada segura para uso em tratamentos de saúde.

O tratamento repetido dos animais com a fosfoetanolamina na dose de 1.000 mg/kg pelo período de 7 dias também não resultou em sinais de toxicidade dentro dos parâmetros avaliados.

Avaliação da máxima dose tolerada e seleção de doses da Fosfoetanolamina sintética em roedores

O objetivo deste estudo foi avaliar a dose máxima tolerada da fosfoetanolamina sintética, utilizando uma dosagem limite recomendada de 5.000 mg/kg. A fosfoetanolamina não apresentou toxicidade em nenhum dos parâmetros avaliados em roedores quando utilizada em dose única de 5.000 mg/kg ou através de doses repetidas de 1.000 mg/kg por 7 dias.

Avaliação da genotoxicidade da Fosfoetanolamina sintética: teste de Mutação Reversa em Salmonella typhimurium (Teste de AMES-ensaio Salmonella/Microssoma)

Os testes de genotoxicidade detectam substâncias que possam induzir a danos no material genético e fazem parte da determinação do perfil de segurança para substâncias candidatas a novos fármacos. As substâncias que são positivas nesses ensaios de genotoxicidade, têm grande potencial de serem carcinogênicos e/ou mutagênicos para humanos. Sustâncias com índices de mutagenicidade iguais ou maiores que dois são consideradas mutagênicas. A fosfoetanolamina teve seus índices de mutagenicidade em diferentes concentrações testadas entre 0,8 e 1,5, sendo assim, esses ensaios sugerem que a fosfoetanolamina não possui potencial mutagênico.

Avaliação da genotoxicidade da Fosfoetanolamina: Teste de micronúcleos em medula óssea de camundongo

A genotoxicidade também foi avaliada pelo teste de micronúcleos em medula óssea de camundongo, o qual detecta alterações genéticas decorrentes de lesões cromossômicas e/ou danos no aparelho mitótico. A formação de micronúcleos é um indicativo de danos irreversíveis ao DNA, e por isso, é usado como indicativo de mutagenicidade. Os testes realizados indicam que o tratamento com a fosfoetanolamina não apresentou efeitos citotóxico e/ou genotóxico, nas condições experimentais utilizadas.

Avaliação da possível atividade anticâncer da Fosfoetanolamina Sintética no carcinoma 256 de Walker

Como existem diversos tipos de câncer que são tratados com medicamentos diferentes, há a necessidade de submeter às substâncias candidatas a novos medicamentos a diferentes testes, para assim identificar para qual tipo de câncer a substância testada será eficaz.

O carcinoma 256 de Walker foi descoberto por George Walker em 1928 a partir de um adenoma de mama de rata e possui rápida proliferação celular. Estudos realizados neste modelo de carcinoma têm sido eficaz para identificar novas substâncias com potencial anticancerígeno (Earle, 1935; Moraes et al., 2000). No estudo realizado, a fosfoetanolamina, não apresentou efeito inibidor em animais tratados com a dose de 1g/Kg de peso corporal por dia, durante 10 dias consecutivos.

Avaliação da possível atividade anticâncer da Fosfoetanolamina no sarcoma 180

O sarcoma 180 é um tumor murino sólido e indiferenciado que se inicia na região axilar, sendo classificado como carcinoma mamário. A fosfoetanolamina não apresentou efeito inibidor do sarcoma 180 nos animais tratados com a dose de 1g/Kg de peso corporal, durante 10 dias de tratamento.

Avaliação da atividade antitumoral da Fosfoetanolamina sintética em modelo de tumores xenográfico de melanoma humano e camundongos

A atividade antitumoral da fosfoetanolamina sintética foi avaliada através da utilização do modelo de tumor xenográfico subcutâneo de melanoma humano em camundongos Nude atímico, administrada por via oral nesses animais. A fosfoetanolamina na dose de 500 mg/kg, mas não na dose de 200 mg/kg, foi capaz de retardar de forma significativa o crescimento tumoral no modelo de tumor xenográfico de melanoma humano subcutâneo em camundongos nude.

Avaliação da atividade citotóxica e antiproliferativa da Fosfoetanolamina, Monoetanolamina, Fosfobisetanolamina em linhagens de células humanas de carcinoma de pulmão, carcinoma de pâncreas e melanoma

Este estudo visou avaliar a atividade citotóxica e antiproliferativa das substâncias fosfoetanolamina, monoetanolamina e fosfobisetanolamina em linhagens de células humanas de carcinoma de pâncreas, carcinoma de pulmão e de melanoma. A avaliação da citotoxicidade das substâncias foi realizada em diferentes etapas: a primeira etapa objetivou avaliar o melhor tempo de incubação dos compostos (24, 48,72 e 96 horas) sobre as linhagens de células de câncer humano, utilizando o método de MTT. As etapas seguintes avaliaram as atividades citotóxicas e antiproliferativas das substâncias, além de avaliar a interferência do pH sobre a citotoxicidade da fosfoetanolamina em células de linhagens de carcinoma de pulmão.

Entre os resultados obtidos, a monoetanolamina, quando incubada em altas concentrações (acima ou igual a 3.000 µM) reduziu tanto a viabilidade quanto a proliferação de células de melanoma humano e em células de carcinoma de pâncreas humano, mas não apresentou a mesma atividade frente a células de carcinoma de pulmão humano.

A fosfoetanolamina, nas condições analisadas, causou uma inibição parcial sobre a viabilidade e a proliferação das células da linhagem celular de carcinoma de pulmão humano em concentrações iguais ou acima de 10.000 µM, esse efeito parece estar relacionado com a redução do pH do meio de cultura causado pela mesma.

A fosfobisetanolamina testada até a concentração de 10.000 µM não apresentou atividade citotóxica e/ou antiproliferativa em nenhuma das linhagens de células tumorais avaliadas.

Estudo de toxicidade de doses repetidas de 28 dias da Fosfoetanolamina em ratos

Este estudo avaliou a toxicidade da fosfoetanolamina quando administrada por 28 dias em ratos machos e fêmeas. As doses testadas foram 100 mg/kg, 500 mg/kg e 1000 mg/kg. Os resultados deste estudo mostram que a fosfoetanolamina não causou morbidade e mortalidade nos animais. No entanto, o tratamento repetitivo com fosfoetanolamina causou alterações hematológicas, como redução de hemácias, hemoglobinas e hematócrito. Além disso, o tratamento com fosfoetanolamina causou mudanças significativas, principalmente nos níveis de cálcio, fósforo, creatinina e bilirrubina total, mas não afetou a coagulação sanguínea e os níveis de eletrólitos.

A fosfoetanolamina administrada por via oral durante 28 dias em ratos não apresentou efeitos tóxicos observáveis durante o tratamento. As alterações hematológicas e bioquímicas ocorridas não refletiram em alterações histopatológicas, já que não foram observados alterações em órgãos e tecidos analisados.

Avaliação do efeito antitumoral da Fosfoetanolamina sintética no modelo experimental de melanoma murino

O melanoma é um dos tumores mais agressivos, devido ao seu alto potencial metastático e sua baixa resposta a terapia. A fosfoetanolamina não apresentou efeito antitumoral nas doses de 200 e 500 mg/kg nos animais inoculados com tumor sólido do tipo melanoma. No entanto, a dose de 100 mg/kg, administrada uma vez ao dia por 16 dias consecutivos, foi capaz de reduzir em 64% o crescimento do melanoma.

Avaliação do perfil farmacocinético da Fosfoetanolamina sintética produzida pela USP e a Fosfoetanolamina padrão (industrializada) em plasma de rato

O perfil farmacocinético e a biodisponibilidade absoluta da fosfoetanolamina foram determinados a partir da administração pela via oral e intravenosa em roedores. A biodisponibilidade absoluta da fosfoetanolamina produzida pela USP foi de 6,3%, enquanto a fosfoetanolamina obtida da indústria farmoquímica alcançou uma biodisponibilidade de 7,0%. Para ambas, o tempo de meia vida de eliminação após administração oral foi 60 vezes superior ao tempo de meia vida de eliminação quando administrado de forma intravenosa. Esses resultados sugerem a via de administração oral a mais adequada para a administração da fosfoetanolamina.

Avaliação da possível atividade antitumoral da Fosfoetanolamina em modelo de tumor xenográfico de melanoma humano em camundongos

Este estudo teve como objetivo avaliar a possível atividade antitumoral da fosfoetanolamina administrado de forma oral em camundongos com tumor xenográfico subcutâneo de melanoma humano. A fosfoetanolamina na dosagem de 500 mg/mL via oral por 24 dias não demonstrou atividade antitumoral nas condições analisadas.

Avaliação de mecanismos envolvidos nas ações citotóxicas da Monoetanolamina em células de linhagem de melanoma humano

A monoetanolamina foi o constituinte encontrado na proporção de 18,2% nas cápsulas de fosfoetanolamina produzidas pela USP e por isso, sua ação antitumoral também foi analisada. A monoetanolamina incubada por 48 horas na concentração de 10.000 Mm reduziu a formação de colônias celulares em 30,1%, alterou o ciclo celular e induziu a morte por apoptose.

Após análise de todos esses estudos, observa-se que a fosfoetanolamina se demonstrou segura nos testes realizados, o que é um fator positivo, uma vez que aumenta a probabilidade desta substância ser segura para uso futuro em humanos. No entanto, os resultados para atividade antitumoral apresentados não foram tão empolgantes para a comunidade científica, mas ainda é cedo para dizer se a fosfoetanolamina se tornará um medicamento para o tratamento de algum tipo de câncer. Os testes com a fosfoetanolamina ainda irão prosseguir, até se obter uma resposta definitiva sobre sua possível ação contra tipos diferentes de câncer. Para acessar os relatórios completos dos estudos realizados, acesse aqui o link.

Referências:

EARLE, W.R. A study of the Walker rat mammary carcinoma 256, in vivo and in vitro. Am J cancer vol. 24, p 566-612, 1935

FERREIRA, ADILSON KLEBER ; FREITAS, VANESSA MORAIS ; LEVY, DÉBORA ; RUIZ, JORGE LUIZ MÁRIA ; BYDLOWSKI, SERGIO PAULO ; RICI, ROSE ELI GRASSI ; FILHO, OTAVIANO MENDONÇA R. ; CHIERICE, GILBERTO ORIVALDO ; MARIA, DURVANEI AUGUSTO . Anti-Angiogenic and Anti-Metastatic Activity of Synthetic Phosphoethanolamine. Plos One, v. 8, p. 3-3, 2013.

FERREIRA, A K ; SANTANA-LEMOS, B A A ; REGO, E M ; FILHO, O M R ; CHIERICE, G O ; MARIA, D A . Synthetic phosphoethanolamine has in vitro and in vivo anti-leukemia effects. British Journal of Cancer, v. 109, p. 2819-2828, 2013.

FERREIRA, ADILSON KLEBER ; MENEGHELO, RENATO ; PEREIRA, ALEXANDRE ; FILHO, OTAVIANO MENDONÇA R. ; CHIERICE, GILBERTO ORIVALDO ; MARIA, DURVANEI AUGUSTO . Synthetic phosphoethanolamine induces cell cycle arrest and apoptosis in human breast cancer MCF-7 cells through the mitochondrial pathway. Biomedicine & Pharmacotherapy, v. 67, p. 481-487, 2013.

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (mcti) http://www.mcti.gov.br/relatorios-fosfoetanolamina, Acessado em 20 de fevereiro de 2017

MORAES, SANDRA PEDROSO DE. Modelo experimental de tumor de Walker. Acta Cir. Bras. Vol 15, m.4, 2000 http://www.mcti.gov.br/relatorios-fosfoetanolamina


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